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Estudos da Fiocruz-RO analisam ação do veneno de serpentes para busca de tratamento mais eficaz
Trabalhos conseguiram reconhecimento mundial ao serem publicados em periódicos internacionais, sendo uma das revistas pertencente ao grupo Nature. No mundo, não há tratamento adequado e com mais eficácia ao local ferido após a mordida.
Entender o processo de envenenamento de serpentes e a ação no corpo humano, desde a ativação do sistema imune até as consequências diretas no tecido muscular, é um dos desafios de um grupo de pesquisadores do Laboratório de Imunologia Celular Aplicada à Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz em Rondônia (Fiocruz-RO), que segue em curso.
Dois trabalhos científicos envolvidos no assunto desse mesmo grupo alcançaram reconhecimento mundial após serem publicados em dois importantes periódicos internacionais especializados. Os projetos foram orientados pela doutora Juliana Pavan Zuliani, chefe do Laboratório de Imunologia Celular Aplicada à Saúde.
Um dos objetivos primários de ambas as pesquisas é ajudar a desmembrar o mistério por trás da ação do veneno no corpo para que, futuramente, haja um tratamento melhor adequado ao local mordido. No mundo, não há tratamento adequado e com mais eficácia ao local ferido após a mordida.
"Nosso grupo de pesquisa já está há mais de 10 anos atuando na área. Esse trabalho é só mais um complemento. O nosso objetivo é tentar contribuir e entender um pouco mais sobre como acontece o envenenamento ofídico", reforçou Mauro Valentino Paloschi, autor de uma das pesquisas que foi publicada na revista Scientific Reports, pertencente ao grupo Nature. O primeiro passo da pesquisa de Mauro foi dado em 2017 e está incluso em sua tese de doutorado.
O doutorando em Biologia Experimental da Universidade Federal de Rondônia (Unir) focou na enzima L-aminoácido oxidase para entender o processo inflamatório causado por esse tipo de acidente. A enzima em questão pertence à serpente Calloselasma rhodostoma, predominante na Ásia.
O veneno da Calloselasma rhodostoma foi escolhido por conter ao menos 30% da L-aminoácido oxidase, enzima também encontrada nas jararacas brasileiras, além de ser uma das principais que causam o efeito tóxico e ainda pouco estudada.
"Mas ela [serpente] é conhecida popularmente como jararaca asiática, porque o veneno dela é muito parecido com a da jararaca brasileira. O mecanismo de envenenamento é muito similar. Por uma questão de logística e por ter mais dessa enzima, a gente acabou trabalhando com esse veneno", explicou.
O pesquisador explicou que já se sabia, por causa de estudos anteriores, que a L-aminoácido oxidase ativa as células conhecidas como neutrófilos, uma das que fazem a defesa do organismo, migrando da corrente sanguínea em direção ao causador da lesão.
Porém, o que não se tinha compreendido até então era como essa ativação acontecia "porque há toda uma maquinaria para produzir esses sinais que vão combater a lesão", segundo Mauro.
Ele também descobriu que essa enzima ativa uma proteína de extrema importância ao processo inflamatório no corpo humano, chamada de fosfolipase.
"O processo inflamatório é bastante complexo. Tem várias proteínas, tem várias enzimas e de várias células que estão envolvidas. É tudo interligado. Essa fosfolipase foi uma chave que a gente encontrou. Ela é uma das proteínas que são ativadas durante o processo inflamatório. Nunca tinham visto isso anteriormente. E que ela é crucial ao mediador que causa dor no paciente", complementou Paloschi.
Já a pesquisa do biomédico Charles Nunes Boeno vai atrás de compreender o processo entre o momento da mordida e a ação direta do veneno no tecido muscular. O trabalho foi publicado no periódico suíço Toxins e se estende desde seu mestrado, época em que decidiu estudar o mecanismo relacionado ao envenenamento de serpentes.
Para entender o processo, o doutorando analisou a proteína fosfolipase, presente em grande quantidade no veneno da serpente Bothrops jararacussu, espécie escolhida pelo pesquisador. Ela ocorre mais na região Sudeste/Sul do Brasil.
"Quando a serpente tem isso no veneno, essa fosfolipase, após o acidente vai ocorrer uma ação dessa proteína resultando em um processo inflamatório intenso, e quando ela executar o processo de envenenamento ofídico, que pode ser acidental ou induzido. Na maioria dos casos é acidental, pois são pessoas que trabalham na roça, com agricultura que mais sofrem", explicou Boeno.
Charles então decidiu simular o envenenamento em camundongos inoculando a toxina no músculo do animal. A conclusão do pesquisador foi de que realmente o processo inflamatório acontece e, a partir disso, passou a observar como a célula afetada reage após o envenenamento.
"Só que as nossas células têm milhões de proteínas diferentes dentro e a gente escolheu essas proteínas relacionadas ao processo inflamatório, que é o que a gente chama de 'inflamassoma'. Então, essas proteínas ficam dentro das células de defesa e vão atuar principalmente no início do processo de inflamação", disse.
O envenenamento da serpente Bothrops jararacussu é bastante intenso, segundo o pesquisador. Se uma pessoa é mordida na perna, a tendência é de que fique com sequelas graves, já que o tecido muscular acaba morrendo.
Com a possível resposta sobre a dinâmica intracelular, Charles cita que será possível melhorar os tratamentos que já existem no mundo atualmente para esse tipo de acidente, mas que ainda sim são pouco eficazes quando o problema se volta ao ferimento e ao dano causado pela mordida.
"O envenenamento é uma doença negligenciada. É uma doença que não tem tanta atenção por parte das instituições governamentais, de saúde, ou até mesmo as privadas, em relação a ter um tratamento, a ter uma medicação. No nosso país, milhões de pessoas durante anos são afetadas por isso. Por ano, em média, 94 mil pessoas sofrem acidentes ofídicos de diferentes espécies", explicou Charles.
No Brasil, as pessoas são tratadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) apenas com soros antiofídicos específicos para os tipos de cobras e serpentes, que basicamente neutralizam o veneno que corre no sangue e inibe a sensação de dor, "mas não tem nenhuma pomada, remédio para tratar e amenizar esse dano local. E, às vezes, aquela pessoa vai ter uma vida modificada até o seu fim porque ela pode ficar com mutilações. É um problema de saúde ainda grave", conforme Charles Boeno.
Como se prevenir?
Segundo o biólogo Flávio Terassini, de cada 10 acidentes no Brasil, sete ocorrem por jararacas. Esse, para ele, é um dos fatores mais importantes para se estudar o envenenamento dessas serpentes. "Até mesmo para outras propriedades medicinais. O soro é o único tratamento. O hospital deve ser procurado o mais breve possível. Caso contrário, poderá ter complicações e até morrer".
De acordo com o Ministério da Saúde, o envenenamento acontece quando a serpente injeta "o conteúdo de suas glândulas venenosas", porém nem toda mordida leva ao envenenamento.
Mesmo assim, o órgão lista alguns cuidados para evitar esse tipo de acidente, como:
- O uso de botas de cano alto ou perneira de couro, botinas e sapatos pode evitar cerca de 80% dos acidentes;
- Usar luvas de aparas de couro para manipular folhas secas, montes de lixo, lenha, palhas, etc. Não colocar as mãos em buracos. Cerca de 15% das picadas atingem mãos ou antebraços;
- Cobras se abrigam em locais quentes, escuros e úmidos. Cuidado ao mexer em pilhas de lenha, palhadas de feijão, milho ou cana. Cuidado ao revirar cupinzeiros;
- Onde há rato, há cobra. Limpar paióis e terreiros, não deixar lixo acumulado. Fechar buracos de muros e frestas de portas;
- Evitar acúmulo de lixo ou entulho, de pedras, tijolos, telhas e madeiras, bem como não deixar mato alto ao redor das casas. Isso atrai e serve de abrigo para pequenos animais, que servem de alimentos às serpentes.
E o que NÃO se deve fazer?
- Torniquete ou garrote;
- Cortar o local da picada;
- Perfurar ao redor do local da picada;
- Colocar folhas, pó de café ou outros contaminantes;
- Beber bebidas alcoólicas, querosene ou outros tóxicos.
Fonte: G1 RO