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Conheça Flávia Pinheiro Fróes, a advogada do tráfico
Ela tem duas décadas de advocacia criminal no currículo e ficou conhecida por defender os líderes das maiores facções do país.

Publicado 10/12/2019
Atualizado 10/12/2019
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(Foto: Rosilene Miliotti)

Ela tem duas décadas de advocacia criminal no currículum e ficou conhecida por defender os líderes das maiores facções do país. Entre eles, estão nomes como Marcinho VP e Fernandinho Beira-Mar, ambos do Comando Vermelho no Rio de Janeiro. Flávia, que se diz antipunitivista e contra a criminalização das drogas, tem trânsito livre e protegido em qualquer favela carioca e usa seu trabalho como ativista para que os direitos humanos não sejam apenas privilégios de alguns. Marie Claire acompanhou três dias da rotina da advogada, que incluiu investigação de homicídio no Complexo do Alemão.

O escritório de paredes pretas no quarto andar de um prédio comercial na avenida Graça Aranha, centro do Rio de Janeiro, cheira a perfume doce e tem temperatura de geladeira. Condição pouco confortável para um nariz que sofre com uma recente rinoplastia. Mas Flávia Pinheiro Fróes, dona do nariz e advogada criminal a frente do lugar, é acostumada aos pós-operatórios, ar-condicionados exagerados e adversidades de toda espécie.

(Quase) tudo e “especialmente as pequenices”, ela diz, “ficam torpes” para uma mulher que tem no currículo trabalhar nas defesas dos maiores traficantes do país – o que inclui entrar frequentemente em presídios de segurança máxima que abrigam presos de alta periculosidade e ter trânsito livre e protegido em qualquer favela carioca. Tudo parte fundamental do trabalho. Flávia sobe o morro para investigar as mortes que caem na conta de seus clientes – e, garante, é das poucas na cidade que se presta a isso sem ter receio da pecha de “defensora da criminalidade tosca” – e visita cadeias para fechar contratos e checar a saúde dos contratantes. Esta última função não está nos seus honorários, mas realiza quando cria afeto por alguns deles. “Um sujeito preso em uma cadeia federal sobrevive à base de solidão, livros e Rivotril. Isso muda o cara, envelhece, tira a vida aos poucos. É muito evidente que ele não vai melhorar. E que tente fazer coisas ruins por revolta”, conta, lembrando de um cliente antigo, Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, apontado como uma das lideranças da facção carioca Comando Vermelho. Condenado a 36 anos, ele está preso há 23, sendo a última metade deles passada na penitenciária de segurança máxima de Catanduvas, no Paraná. 

Filha de um representante comercial e uma dona de casa formada em letras, Flávia, que tem 44 anos, nasceu no Espírito Santo durante uma viagem de férias da família, mas cresceu na Tijuca, bairro da Zona Norte da capital fluminense, junto de outros três irmãos. Na faculdade, escolheu o curso de direito porque queria ser promotora e achava bonita a profissão. Em meados dos anos 90, foi estagiária do Ministério Público em um presídio estadual que existe até hoje no bairro Quinta da Boa Vista, o Evaristo de Moraes, popularmente conhecido como Galpão da Quinta. Na época, seu lema era “bandido bom é bandido morto”. “Mas a advocacia criminal me arrebatou e trouxe um conhecimento de mundo que mudou tudo”, lembra. No Galpão da Quinta, a população carcerária era de presos considerados “pequenos”, “desses sem dinheiro, que fazem hora extra na cadeia e terminam a vida ali, esquecidos”.

A advogada então começou a atender os casos mais simples, que só exigiam reunir papéis e ir atrás de assinaturas. Absolveu ao menos uma centena de indivíduos nos três primeiros meses de trabalho. Em um ano e dez meses – o tempo em que estagiou no lugar – passaram por ela 962 processos. “Trabalhei com dedicação em todos e consegui solucionar a maioria. Ali, ganhei o apelido de anjo da liberdade. De uma jovem fascista, me tornei uma ativista pelos direitos humanos. Entendi que por trás de cada prisão e cada processo havia uma história. Ninguém vai para o crime porque quer, ainda mais num país como o nosso, onde criminoso tem cor, gênero e classe social estabelecidos.”

As absolvições no Galpão ganharam repercussão e chegaram aos ouvidos de chefes de comunidades cariocas. Esses homens, os líderes do tráfico, Flávia aprendeu a chamar de “donos dos morros”. Já eles, aprenderam a chamá-la de “doutora”. Foi em 1999, aos 24 anos, que defendeu e soltou seu primeiro grande cliente do tráfico, Jorge Zambi, o Pianinho, um dos criadores do Terceiro Comando, facção também com base no Rio de Janeiro. “Quando o liberei, os grandes não pararam de me procurar. A partir daí e até então, só teve uma grande facção em que ainda não atendi a ninguém, a Okaida [de Pernambuco e para qual Flávia só não advogou ainda por falta de oportunidade].” No mais, defende ou já defendeu líderes de todas as outras: Amigos dos Amigos, Terceiro Comando, Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital (que atua em São Paulo, mas tem braços em outros 22 estados brasileiros e até em países próximos como Bolívia e Paraguai).

Sobre advogar para facções muitas vezes rivais, ela afirma: “Não é um problema ou qualquer tipo de exigência para ninguém”. Flávia ainda diz que nunca teve crise de consciência por causa das atividades criminosas de sua clientela. Muito pelo contrário. Ela ergue a voz quando é questionada sobre isso e responde com convicção: “É um comércio como outro qualquer. Ninguém pergunta para o cabeleireiro da mulher do traficante de onde vem o pagamento dele, nem para o médico do traficante. O meu dinheiro é lícito e meu imposto de renda devidamente declarado; minha atividade é prevista na Constituição e não fere nada nem ninguém, se feita com ética. Sem falar que defesa é um direito de todos e, acredito, também uma forma de fazermos justiça. Ou você acha que todo mundo que morre no morro morre pelas mãos do tráfico?!”.

O fato de Flávia ter certezas a respeito dos valores de seu trabalho nunca a livrou do julgamento dos outros. No começo, houve preconceito dentro da própria comunidade jurídica. “Era como se eu não fosse advogada o suficiente só pelo fato de defender traficante. Ficava aquela coisa de ‘Ah, ela entra em favela, em presídio, lida com essa gente suja’. Mas agora, os clientes engravatados de outros advogados também estão presos, especialmente os políticos. Baixaram a crista para falar de mim, apesar de nunca terem parado de me chamar de doida.” Entre os seus clientes, o preconceito veio – e ainda aparece se o contratante é novo – pelo fato dela ser mulher. “O tráfico é um meio machista. O lugar da mulher ali é de subserviência e objetificação. Imagine quando os chefes descobrem que quem vai fazer júri para eles é uma loira de aplique nos cabelos, silicone nos peitos e que não sai de casa sem salto dez?! Hoje, tenho fama de boa, talvez a melhor no que faço, e então eles não demoram a me respeitar. Mas quando tinha 20 anos, precisei me masculinizar para fazer os primeiros atendimentos. Vestia calças largas, evitava decote, prendia o cabelo em um coque e usava nada de maquiagem.”

A vaidade que ela ostenta agora foi uma conquista, e essa história Flávia gosta de contar. A cada caso que ganhava, algo em sua aparência mudava. Foi parecido com o que aconteceu com a sua conta bancária.

“Ninguém vai para o crime porque quer, ainda mais num país como o nosso, onde criminoso tem cor, gênero e classe social estabelecidos”

Defender os maiores nomes do tráfico nacional inflamou os honorários da advogada, que atualmente não pega nenhum caso por menos de 300 mil reais. O valor é tabelado e inclui investigações e júri. Mas nem sempre as cifras foram essas. A “virada financeira” de Flávia aconteceu em 2002 defendendo José Roberto da Silva Filho, o Robertinho de Lucas, então chefe do tráfico da comunidade Parada de Lucas e presidente do Terceiro Comando. “Foi um cliente inesquecível. Quando o soltei em 2002, comprei minha casa e uma casa para os meus pais. Na época, ele me pagou 250 mil dólares”. Robertinho marcou a conta bancária de Flávia, e também seu coração. “Ficamos próximos, me afeiçoei a sua família, à mulher dele. E por isso, quando foi assassinado, chorei sua morte. Ele já havia largado o crime e nem vivia mais no Rio, tinha 23 filhos e era um cara de um coração enorme. Quando foi líder, era ligado à favela de verdade, pensava em melhorar a vida das pessoas dali, ajudava a comunidade.”

Em 2010, de defensora Flávia virou ré na Justiça. Sua prisão e a de outros dois advogados de traficantes, Beatriz Costa de Souza e Luis Fernando Costa, foram decretadas por um juiz que afirmava que, ao visitarem clientes na penitenciária de Catanduvas, recebiam ordens e se encarregavam de transmiti-las aos demais membros das facções quando voltavam ao Rio. Flávia, Beatriz e Luis foram denunciados por associação ao tráfico e, se condenados, pegariam até 15 anos de prisão. O caso rendeu cobertura diária no Jornal Nacional. Flávia fugiu. “Porque só foragida poderia juntar provas em nome de minha inocência”, explica ela, que entrou com um Habeas Corpus no TJ do Rio de Janeiro. Deu certo. Semanas após o decreto, uma desembargadora da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro concedeu a liminar para que os advogados não fossem presos. “Dei o nome dela, Maria Helena, à minha netinha que nasceu este ano. Essa mulher salvou minha pele. Fui vítima do mesmo sistema que combato há décadas, esse que vê no encarceramento resposta para tudo e coloca inocentes atrás das grades.”

Autodeclarada antipunitivista e de extrema esquerda, Flávia ainda se diz contra a criminalização da venda de drogas e acredita na regulamentação de todo tipo de substância considerada ilícita, “inclusive o crack”. “A criminalização é o que mantém o controle social da pobreza”, defende ela, que há 17 anos administra, além do escritório de advocacia criminal, o Instituto Anjos da Liberdade, uma ONG de direitos humanos que atua em 15 estados. “Nosso trabalho vai das prostitutas da Vila Mimosa no Rio, passando por povos indígenas em Brasília e em Rondônia, chegando aos usuários de crack em São Paulo. E, claro, a grande bandeira do instituto e o motivo da sua criação são as vítimas do sistema penitenciário.” Por meio da ONG, ela presta assessoria jurídica a quem não pode pagar – como fazia no Galpão da Quinta quando estagiária – e organiza campanhas para informar a população. Em 2012, conseguiu o apoio de importantes clientes, Fernandinho Beira-Mar entre eles, em uma ação para falar sobre o descaso social com usuários de craque. Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho, que atualmente não tem nenhum processo nas mãos de Flávia, é considerado um dos maiores traficantes de armas e drogas da América Latina e cumpre pena na penitenciária federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte.

“Minha história não me deixa ser morta sem a autorização de muita gente. Sou um defunto caro. Tenho imunidade diplomática, digamos assim”

É também pelo Instituto que Flávia denuncia o Estado brasileiro e seus governantes em cortes internacionais. Sérgio Cabral, governador do Rio de Janeiro de 2007 a 2014, foi um deles. “Fiz do Cabral meu pior inimigo. O denunciava constantemente pelos atos que cometia em favela. Para  além da questão da corrupção, ele fez um genocídio no morro por meio da polícia. Contra o Cabral, defendi muita gente de graça, como ativista”, diz.
Em um daqueles dias que a acompanhamos, depois de levar a reportagem de Marie Claire a uma manifestação em prol do jornalista norte-americano Glenn Greenwald, ela ainda nos convidou a segui-la até uma das comunidades do  Complexo do Alemão para a reconstituição de um homicídio atribuído a um de seus clientes. “E fique tranquila”, falou, quebrando o silêncio que veio depois do convite, “minha história não me deixa ser morta sem a autorização de muita gente. Sou um defunto caro. Tenho imunidade diplomática, digamos assim. Tá comigo, tá com Deus”.

No Alemão

“Assim que fechamos a entrevista com Flávia no Rio, ela avisou que em um daqueles dias, concidentemente, teria uma investigação de homicídio para fazer no Complexo do Alemão. Detalhe: seria à noite, quando as testemunhas já teriam chegado do trabalho. E então veio o convite: “Vamos comigo? Dois jornalistas franceses estarão conosco por conta da gravação de um documentário sobre mim”. Confesso que pensei por dias, consultei amigos repórteres que costumam cobrir tráfico e polícia no Rio de Janeiro, que perguntei umas três vezes para a própria Flávia o quanto isso seria seguro. Decidi então que faria a entrevista, acompanharia o dia dela e só então, já com a chegada da noite, resolveria se subiria o Alemão. A verdade é que fui ficando segura quanto a isso no decorrer do dia  – Flávia é uma potência, passa confiança, e eu também não queria perder a chance de vê-la em ação. Por volta de oito da noite, eu e os franceses entramos no carro dela, uma BMW branca de vidros furta-cor. Depois de abaixar o volume da canção de Chico Buarque, ela foi dirigindo rumo ao Alemão, sem cinto de segurança, “porque o tempo de tirar o cinto é o de escapar de um tiro”. No pé do morro, mandou uma meia dúzia de áudios de WhatsApp para o contato que liberaria nossa entrada. A BMW subiu com os vidros totalmente abertos por orientação do tal contato. Flávia ainda parou o carro para comprar uma lata de cerveja e deixou o troco de uma nota de R$ 100 com o comerciante que a atendeu. Descemos do carro e a investigação começou. O processo todo durou cerca de duas horas e envolveu as testemunhas (funcionários do tráfico e moradores), duas secretárias da advogada e um fotógrafo. Todos ali colaborando para o trabalho de Flávia que, no fim das contas, serviria para endossar a defesa de um processo atribuído a um dos donos do Alemão, hoje preso em uma cadeia federal.”

 

 

(Foto: Rosilene Miliotti)
(Foto: Rosilene Miliotti)